sábado, 22 de setembro de 2012

Antes vermelhos do que mortos

Há 30 anos atrás, a Europa era muito diferente do que é hoje. A Alemanha era um gigantesco campo militar, o aeroporto de Frankfurt tinha mais aviões da USAF do que da Lufthansa, os fiordes da Noruega eram o refúgio do norte da US Navy, a Islândia estava pejada de radares a vigiar o acesso ao Canadá, os gelos do Ártico assistiam a verdadeiras caçadas de submarinos, os campos da Friulia Venezia Giulia estavam minados a prevenir a invasão enquanto brigadas mecanizadas treinavam o ataque à Jugoslávia, a Áustria e a Finlândia eram um países adiados, cercados por arame farpado, a Turquia e a Grécia esqueciam a sua guerra milenar, de olhos virados para lá.
Esta militarização e estado de violência latente promovia equívocos sociais. A Espanha estava a ferro e fogo com a ETA, o IRA aterrorizava Londres, as Baden Manhof extorquiam e matavam empresários alemães, as Brigadas Vermelhas assassinaram o primeiro ministro Aldo Moro, a Máfia crescia de dia para dia e mais tarde faria o massacre da estação de Bolonha e assassinaria  os juízes Falcone e Borselino. Kadahfi abatia aviões da Pan Am, Arafat desviava TWA e cruzeiros no Mediterrâneo, tínhamos Abu Nidal e Carlos Chacal a plantar bombas. O mundo era perigoso. Muito, muito perigoso.
A ameaça soviética era real. O exército vermelho tinha quase o dobro dos efectivos dos do lado de cá, em estado de prontidão quase imediata. Os partidos comunistas ocidentais formavam uma confortável linha avançada, infiltravam informadores em quase todos os níveis da sociedade e dos estados. A máquina de propaganda enaltecia as virtudes da vida socialista, as vitórias desportivas, a ausência de excluídos, a limpeza e a ordem. O muro de Berlim estava lá para impedir a passagem dos perigosos agentes subversivos capitalistas.
Entretanto, o Kremlin tinha decidido montar um rede nuclear de proximidade. Uma bateria de centenas de mísseis de alcance intermédio SS-20, estendida desde o norte da Alemanha até à Hungria e Checoeslováquia, preparados para dar uma resposta pronta e eficaz em caso de conflito, apontados às várias cidades ocidentais, constando mesmo que haveria um para Lisboa e outro para o Porto. O efeito era ameaçador e disuasor de qualquer tentativa de libertação (palavra proibida na época) dos povos oprimidos pela Cortina de Ferro.
O Ocidente estava desmoralizado. Os impérios coloniais tinham-se desmoronado e o agora chamado terceiro mundo optava pelo socialismo. A crise do petróleo assustava a economia. Dizia-se que a gasolina acabaria antes do fim do século e até lá atingiria preços exorbitantes. As monarquia do Golfo ganhavam importância financeira e estratégica. Do Irão chegavam as primeiras notícias de fundamentalismo islâmico.
Nos Estados Unidos surgiu então um republicano que desfez reeleição de Carter. Um cowboy californiano, ex-actor mediano, que graças a algum populismo tinha chegado a governador do estado. Ronald Reagan.
Numa América a lamber as feridas do Vietname, humilhados com as dezenas de reféns na sua embaixada em Teerão, com movimentos pacifistas e ecologistas ainda inflamados com o incidente de Three Miles Island, com níveis altíssimos de violência e homicídio nas suas cidades, o discurso e acção de Reagan foi desconcertante. No plano interno promoveu a securatização das cidades que levou a campeã da violência urbana, Nova Iorque, a destino turístico de eleição 10 anos depois. No plano económico aplicou os ditâmes da escola de Chicago, o liberalismo de Milton Friedman. Desactivou sectores inteiros da economia, apostou nas novas tecnologias, e fez-nos chegar a este mundo dos americanos iphone feitos na China ligados por uma internet global.
No plano externo fez a maior revolução. Identificou o mal vermelho, chamou-o pelo nome, decidiu não baixar a guarda, investir em tecnologia miltar, enfrentar os soviéticos onde fosse preciso.
Na europa, reforçou o número de tropas, financiou a Voz da América como nunca, protegeu e divulgou a causa dos dissidentes. Mas o maior passo foi a decisão da nuclearização do conflito. À parte os simbólicos arsenais britânico e francês, a Europa sentia-se livre de armas nucleares. O que contava para manter a paz armada era os mísseis intercontinentais que os dois beligerantes apontavam um ao outro, garantindo a destruição mútua. A Europa encolhia os ombros e até acreditava que com um bocadinho de sorte escaparia ao inferno.
Mas a realidade já era outra. Reagan encetou contactos, explicou e explanou os factos, e convenceu os governos da Itália, Alemanha e Reino Unido, a aceitarem a instalação no seu território, de mísseis de curto e médio alcance Pershing 2, para contrapor a ameaça dos SS-20. Em 1982 começaram a chegar e a ser instalados os primeiros.
A reacção popular foi forte e imediata. Ficaram famosas as manifestações populares à porta das bases americanas onde ficariam as rampas de lançamento, principalmente na Alemanha, lideradas pelos Verdes. As pessoas acorrentaram-se, deitavam-se à frente dos camiões, fizeram cordões humanos de quilómetros, durante meses e meses.
O principal slogan pacifista da época era "Antes vermelhos do que mortos". Um claro sinal de rendição. Uma negação do risco e do sacrifício. Preferir o certo e seguro num conforto ilusóriamente estável, mesmo que isso leve a miséria e ao agrilhoar das próximas gerações. Um egoísta não querer chatear e meter a cabeça num saco, recusar a realidade.
A instalação foi feita, os soviéticos recuaram, veio Gorbatchov, a China abriu-se, o mundo desenvolveu-se como nunca com uma paz inédita nos últimas décadas, as democracias demonstraram a sua superiodade moral. Desde que bem lideradas.
Agora os europeus chegaram a outro ponto de rotura. Têm de largar a rotina, perceber que o dia de amanhã vai ser diferente do dia de ontem, pode já não existir o seu negócio, profissão, rendimento ou pensão. Vai ser doloroso. Não porque queremos mas porque tem de ser. Felizmente sem mísseis.
Nestes últimos meses e principalmente nas últimas semanas, no meio de tantas palavras de ordem, nas horas de maior cansaço, entro em estado catatónico, no meu cérebro sinto o filme a abrandar, a gritaria a baixar, vejo rostos deformados do slow motion e ouço uma voz grave a dizer... "Antes vermelhos do que mortos".
Dá-me vontade de chorar.

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