A velha casa de madeira na praia era o ponto de encontro e
descanso de pescadores, muito antes do turismo procurar estas paragens. Juntavam-se lá aos domingos, nos fins de tarde,
nos piores momentos dos raros invernos rigorosos. Uma velha taberna
que só abria para eles e com eles, como um clube. Política,
marinha turca, futebol, arrastões russos, coronéis, falta do atum que já não
abundava, tudo discutido, com jogos de cartas, rosário na mão e
muito álcool.
Lá pelos 80, com a CEE também veio a descoberta do mundo e
do turismo. A ilha passou a estar na rota dos ferries do Pireu. Ambiente mudado, jovens nórdicos, outros hábitos, novos consumos. Alugar
camas de praia, vender fruta e água fresca, passou a ser mais rentável
do que arriscar a vida nas madrugadas do mar, e o abrigo de madeira clube dos pescadores
foi adaptado a café de praia pelo filho mais novo de um dos homens
da ilha. Trabalhara embarcado no bar de um ferry, juntara algum e agora resolvera
assentar. Durante anos serviu refrigerantes, frutas e sandes, alugou sombrinhas e cadeiras de praia. Fez obras, a casa cresceu.
Um dia decidiu mudar-se para a capital. Uns dizem que foi porque estava cansado, outros, mais avisados, dizem que já não suportava a pressão das dívidas de jogo, vício ganho a bordo. Quis passar o negócio. Não esteve fácil. Até que chegaram os forasteiros.
Um dia decidiu mudar-se para a capital. Uns dizem que foi porque estava cansado, outros, mais avisados, dizem que já não suportava a pressão das dívidas de jogo, vício ganho a bordo. Quis passar o negócio. Não esteve fácil. Até que chegaram os forasteiros.
Um casal simpático, correcto, de poucas falas. Espanhóis ou
brasileiros, segundo se dizia. Ele já passava os 60, ela seria mais
nova. Pegaram no velho café, trabalharam dia e noite, investiram
economias e ideias. Nasceu o restaurante. Em pouco tempo passou a ser a
referência da ilha, não pela particular excelência da cozinha dele, mais
pelo ambiente de luz, decoração, música e simpático serviço dela, como
se recebesse em casa. As noites amenas eram agradáveis, a fama galgou o
mar.
Foram anos tranquilos. Os turistas sucediam-se de Abril a
Outubro. Cafetaria e pequenos pratos frios no calor do dia. Jantar mais
elaborado, com bom peixe do mar em frente, duramente negociado todos os
dias com os velhos homens da pesca. Carne dos animais criados nas encostas sobranceiras às águas azuis. Cozinhados como se fosse para casa e mais alguns amigos.
Adaptaram-se bem à ilha. Pouco dados a efusões e festejos, não faziam perguntas nem se metiam nos sempre
atribulados conflitos do meio pequeno. Ganharam o respeito das gentes, o
que lhes permitia passar os meses da época baixa numa relativa
tranquilidade. Também era apreciado darem emprego fixo a uma miúda da
aldeia que ajudava na cozinha e outro sazonal quando a esplanada precisava
de abrir cedo, com os primeiros raios de sol, para os veraneantes
madrugadores.
Ela desde sempre dormira no quarto grande, virado ao mar,
antiga arrecadação de redes e aprestos. De manhã cedo abria a portada e
saía com os seus dois cães, para o areal que chegava à soleira.
Por essa hora já ele andava pelo mercado, a comprar o melhor dos
produtos da terra. Descia a escada exterior ainda madrugada, do terraço
da cobertura onde instalara o seu quarto sobre o mar.
O
boato correu rápido. O pessoal estranhava e pouco assunto havia mais
para falar. Seriam irmãos. Os mais afoitos chegaram a perguntar mas
foram recebidos com a simpatia e sorriso dos bem educados que não querem
dar explicações. Diziam-se sócios e bons amigos. Daí a histórias de
fugas a casamento, desfalques e até crimes de sangue, foi um passo. Mas
também ninguém se importava com isso. Eram boas pessoas. Algo
excêntricos, mais nada.
Durante anos viveram em paz. Longas horas de silêncios no terraço. Ele
com o monóculo via os barcos ao longe, imaginava rotas e vidas, lia as
estrelas do céu e sonhava com as crateras da lua. Ela com as suas
histórias, escrevia enredos de mil e uma novelas, personagens densas e
heróicas, mulheres fortes e decididas, homens bons e humorados.
Fantasia. Ninguém sabia como faziam. Não se importavam, não precisavam
de falar. Procuravam o conforto tranquilo. O calor dos corpos ao luar,
ao ritmo do mar a enrolar os seixos. Preservavam-se e amavam-se. Sim,
durante anos viveram em paz. Finalmente.
Um dia de outono ainda morno. Ela abriu o
quarto ao sol da manhã. Saiu, espreguiçou-se, calcou a areia ainda
fresca, num silêncio calmo. Os cães ficaram. Corriam sempre até à
rebentação mas nesse dia ficaram. A pequena janela do andar de cima estava
fechada.
Ele já não era novo, nesse
dia não acordou. Ela pediu ajuda, caminhou para longe. Mergulhou várias
vezes no mar. Ninguém lhe viu uma lágrima. Tratou de formalidades.
Passou o restaurante por bom preço a um casal alemão que já por várias
vezes tentara. Alugou um pequeno barco de pesca, espalhou as cinzas nas
águas, quase a uma milha da velha casa de madeira onde ele fora feliz.
Partiu. Foi para o Canadá. Teria lá filhos e netos.
Sim, viveram em paz.
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