quarta-feira, 25 de junho de 2014

Não há dias felizes

A velha casa de madeira na praia era o ponto de encontro e descanso de pescadores, muito antes do turismo procurar estas paragens. Juntavam-se lá aos domingos, nos fins de tarde, nos piores momentos dos raros invernos rigorosos. Uma velha taberna que só abria para eles e com eles, como um clube. Política, marinha turca, futebol, arrastões russos, coronéis, falta do atum que já não abundava, tudo discutido, com jogos de cartas, rosário na mão e muito álcool.
Lá pelos 80, com a CEE também veio a descoberta do mundo e do turismo. A ilha passou a estar na rota dos ferries do Pireu. Ambiente mudado, jovens nórdicos, outros hábitos, novos consumos. Alugar camas de praia, vender fruta e água fresca, passou a ser mais rentável do que arriscar a vida nas madrugadas do mar, e o abrigo de madeira clube dos pescadores foi adaptado a café de praia pelo filho mais novo de um dos homens da ilha. Trabalhara embarcado no bar de um ferry, juntara algum e agora resolvera assentar. Durante anos serviu refrigerantes, frutas e sandes, alugou sombrinhas e cadeiras de praia. Fez obras, a casa cresceu.
Um dia decidiu mudar-se para a capital. Uns dizem que foi porque estava cansado, outros, mais avisados, dizem que já não suportava a pressão das dívidas de jogo, vício ganho a bordo. Quis passar o negócio. Não esteve fácil. Até que chegaram os forasteiros.
Um casal simpático, correcto, de poucas falas. Espanhóis ou brasileiros, segundo se dizia. Ele já passava os 60, ela seria mais nova. Pegaram no velho café, trabalharam dia e noite, investiram economias e ideias. Nasceu o restaurante. Em pouco tempo passou a ser a referência da ilha, não pela particular excelência da cozinha dele, mais pelo ambiente de luz, decoração, música e simpático serviço dela, como se recebesse em casa. As noites amenas eram agradáveis, a fama galgou o mar.
Foram anos tranquilos. Os turistas sucediam-se de Abril a Outubro. Cafetaria e pequenos pratos frios no calor do dia. Jantar mais elaborado, com bom peixe do mar em frente, duramente negociado todos os dias com os velhos homens da pesca. Carne dos animais criados nas encostas sobranceiras às águas azuis. Cozinhados como se fosse para casa e mais alguns amigos.
Adaptaram-se bem à ilha. Pouco dados a efusões e festejos, não faziam perguntas nem se metiam nos sempre atribulados conflitos do meio pequeno. Ganharam o respeito das gentes, o que lhes permitia passar os meses da época baixa numa relativa tranquilidade. Também era apreciado darem emprego fixo a uma miúda da aldeia que ajudava na cozinha e outro sazonal quando a esplanada precisava de abrir cedo, com os primeiros raios de sol, para os veraneantes madrugadores.
Ela desde sempre dormira no quarto grande, virado ao mar, antiga arrecadação de redes e aprestos. De manhã cedo abria a portada e saía com os seus dois cães, para o areal que chegava à soleira.
Por essa hora já ele andava pelo mercado, a comprar o melhor dos produtos da terra. Descia a escada exterior ainda madrugada, do terraço da cobertura onde instalara o seu quarto sobre o mar.
O boato correu rápido. O pessoal estranhava e pouco assunto havia mais para falar. Seriam irmãos. Os mais afoitos chegaram a perguntar mas foram recebidos com a simpatia e sorriso dos bem educados que não querem dar explicações. Diziam-se sócios e bons amigos. Daí a histórias de fugas a casamento, desfalques e até crimes de sangue, foi um passo. Mas também ninguém se importava com isso. Eram boas pessoas. Algo excêntricos, mais nada.
Durante anos viveram em paz. Longas horas de silêncios no terraço. Ele com o monóculo via os barcos ao longe, imaginava rotas e vidas, lia as estrelas do céu e sonhava com as crateras da lua. Ela com as suas histórias, escrevia enredos de mil e uma novelas, personagens densas e heróicas, mulheres fortes e decididas, homens bons e humorados. Fantasia. Ninguém sabia como faziam. Não se importavam, não precisavam de falar. Procuravam o conforto tranquilo. O calor dos corpos ao luar, ao ritmo do mar a enrolar os seixos. Preservavam-se e amavam-se. Sim, durante anos viveram em paz. Finalmente.
Um dia de outono ainda morno. Ela abriu o quarto ao sol da manhã. Saiu, espreguiçou-se, calcou a areia ainda fresca, num silêncio calmo. Os cães ficaram. Corriam sempre até à rebentação mas nesse dia ficaram. A pequena janela do andar de cima estava fechada.
Ele já não era novo, nesse dia não acordou. Ela pediu ajuda, caminhou para longe. Mergulhou várias vezes no mar. Ninguém lhe viu uma lágrima. Tratou de formalidades. Passou o restaurante por bom preço a um casal alemão que já por várias vezes tentara. Alugou um pequeno barco de pesca, espalhou as cinzas nas águas, quase a uma milha da velha casa de madeira onde ele fora feliz.
Partiu. Foi para o Canadá. Teria lá filhos e netos.
Sim, viveram em paz.

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